Por: Rändler Michel
Minha Jornada Sombria e o Despertar da Alma: Como o Trauma Forjou o Terapeuta (Uma Perspectiva Junguiana). A Escolha de Quíron, o centauro da mitologia grega, como ilustração é justamente por representar o curador ferido. Os terapeutas, aqueles que assim como eu, que por meio da própria dor, passa a compreender e apreciar a dor alheia e por tanto pode enxergar muito além do que aqueles que estão cegamente satisfeitos. Quíron, representa a parte ferida em algum problema que parece ser insolúvel e com tempo recebe a cura.
Desde muito cedo, minha vida foi marcada por eventos que fragmentaram minha alma. Aos 6 anos, a perda de minha mãe instalou um vazio primordial, uma ferida, cuja a cicatriz nunca fechou. Aos 7, o assédio e tentativa de abuso sexual por um familiar, um tio infeliz. Após 45 anos, pós várias terapias sinto a confiança em falar sobre. Sei que este foi um tipo de trauma, que me fez perder a confiança básica no mundo e no meu próprio corpo.
Por muito tempo, carreguei essas feridas invisíveis, buscando respostas para a dor que não tinha nome nem lugar. Por que alguns de nós ficam presos no passado, enquanto outros conseguem se reerguer? Para mim, essa pergunta deixou de ser acadêmica e se tornou uma questão de sobrevivência.
Essa busca incessante por compreensão foi o que me levou aos estudos de Psicanálise e, fundamentalmente, à Psicologia Analítica de Carl Jung. Eu precisava entender a psique humana, pois a minha própria estava em pedaços. Foi nesse caminho que descobri que a cura não é apenas possível, mas segue um padrão de transformação.
Minha trajetória pessoal me mostrou que o trauma é tudo aquilo que sobrecarrega nossa capacidade de processamento emocional. Para me tornar o terapeuta que sou hoje, precisei atravessar quatro etapas que Jung me ajudou a integrar muito bem.
Etapa 1: O Reconhecimento Corajoso e a Aceitação da Sombra
A primeira etapa exigiu de mim uma coragem que eu mal sabia que existia. Era a coragem de olhar para o meu próprio "porão escuro" e aceitar o que a minha criança interior ainda estava lá: a dor da orfandade e a mancha da violação.
Eu entendi que, como dizia Jung, eu não poderia curar aquilo que não reconhecia conscientemente. Tentar negar ou minimizar a morte de minha mãe e o abuso era o que mantinha esses eventos vivos e atuantes no meu inconsciente.
O reconhecimento foi um ato de honestidade radical. Foi dizer: "Sim, esses horrores aconteceram comigo, e eles me afetaram profundamente." A aceitação não significou aprovar o que foi feito, mas sim parar de lutar contra o que já tinha ocorrido, permitindo que a tristeza da perda e a raiva da violação viessem à superfície. Foi o primeiro momento em que comecei a tratar o meu eu criança com a auto-compaixão que eu negava a mim mesmo.
Etapa 2: A Compreensão Profunda e a Ressignificação de minha própria História
Nesta fase, a teoria psicanalítica e os arquétipos de Jung se tornaram meus guias. Eu precisei conectar os traumas da minha infância aos padrões que se repetiam na minha vida adulta. O medo de perder quem eu amo, o medo de perder a mim mesmo.
Por exemplo, a perda precoce me levou a um profundo medo do abandono, enquanto o assédio gerou uma hipervigilância crônica e uma dificuldade imensa em estabelecer confiança básica. Meu corpo estava programado para a defesa. Eu precisava entender como essas estratégias de sobrevivência do meu eu de 7 anos estavam sabotando o meu eu adulto.
A ressignificação foi a chave. Eu não queria ser definido apenas pelo que fizeram comigo ou pelo que me tiraram. A dor da minha jornada não era o meu destino, mas sim o motor que me impulsionou a estudar a fundo a alma humana. Eu comecei a perceber que a profundidade da minha ferida me dava uma empatia incomum — uma capacidade de me sentar com a dor do outro no consultório, não com pena, mas com um conhecimento visceral. Foi assim que minha identidade se transformou: de "vítima" para "sobrevivente que encontrou um propósito".
Etapa 3: A Integração Emocional e a Liberação Somática
A verdadeira alquimia da cura aconteceu aqui, na integração. O estudo do trauma me ensinou que o corpo é o guardião da memória traumática. As emoções (luto, medo, raiva) ficaram "congeladas" no meu sistema nervoso.
Para mim, o processamento não foi apenas mental; foi profundamente somático. Minha análise pessoal se tornou o laboratório onde usei a Psicologia Analítica para integrar o material reprimido. O trabalho com símbolos e sonhos revelou as partes fragmentadas da minha psique, oferecendo uma linguagem para aquilo que as palavras não conseguiam alcançar.
A respiração, as técnicas de liberação corporal e a escrita terapêutica foram fundamentais para "descongelar" a raiva e o pânico. O objetivo era desenvolver um ego forte no sentido junguiano: a capacidade de me manter centrado e consciente, observando a intensidade emocional sem ser arrastado por ela. Eu finalmente pude sentir a dor daquele luto e daquela violação, não como se estivesse acontecendo de novo, mas como algo que aconteceu, e que agora podia ser liberado.
Etapa 4: A Reconstrução e o Crescimento Pós-Traumático
Hoje, a reconstrução é a minha realidade e o meu trabalho. Eu não sou apenas uma pessoa que sobreviveu aos traumas de infância; sou alguém que utilizou essa experiência para se tornar um profissional mais sábio e compassivo.
O crescimento pós-traumático permitiu que a profundidade do meu sofrimento se transformasse na profundidade da minha capacidade de ajuda. O estudo da psicanálise e o conhecimento da teoria de Jung não são apenas o meu ofício; são o mapa que tracei a partir da minha própria escuridão. Por incrível que pareça, pós psicanálise, pós várias análises pessoais que passei com terapeutas, para entregar o tripé da minha formação psicanalítica ( teoria, análise pessoal e supervisão) , hoje posso dizer que sou amigo da minha sombra.
Minha maior força emerge da minha vulnerabilidade integrada. No consultório, sou testemunho compassivo, capaz de sentar com a dor do outro porque eu conheço o caminho de volta.
A cura é um processo contínuo de individuação, um compromisso de vida inteira. E a minha maior satisfação é ver que a minha jornada – que começou com a perda e a violação – se tornou a base sólida para guiar outras almas na busca por sua própria totalidade e liberdade.
Referência:
Stein, Murray. Jung: o mapa da alma. São Paulo: Cultrix, 2006.

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